Advogadas ressaltam os estigmas e barreiras enfrentados ao se tornarem pioneiras nos espaços jurídicos.
O conceito de “primeira” no dicionário Michaelis é definido como “aquela que precede a outros em relação a tempo, lugar ou importância”. Ou como aquela que “representa o início ou que constitui o começo de tudo”. Ainda no mesmo glossário, é possível encontrar o significado de “única”, como aquela “que não existe outro de sua espécie ou gênero; exclusivo, singular”, que “é especial ou fora do comum”.
Esses são dois adjetivos que marcam histórias de diversos negros e negras em ascensão pelo país. Sheila de Carvalho, por exemplo, tornou-se primeira mulher negra a ser secretária de Acesso à Justiça do ministério da Justiça.
“Ser uma mulher negra no ministério da Justiça para mim é por vezes a continuidade de uma sina. É a sina que eu carrego há um tempo de ser a primeira mulher negra ocupando os espaços.”
O título de pioneira é também carregado por Marcelise Azevedo, advogada e primeira mulher negra na Comissão de Ética Pública da Presidência.
“Eu tenho total consciência da relevância desse protagonismo de ser a primeira ou de ser a única. Eu só não me apego muito a eles porque eu sei o que significa ser a primeira e ser a única significa é como se eu estivesse carimbando o racismo.”
Veja o vídeo:
Sheila explica que ser uma mulher negra na Justiça exige constante alerta e defesa contra os estigmas de raça.
“Todo dia alguém me questiona se eu devia estar mesmo aqui. Todo dia alguém me questiona antes mesmo de me conhecer só pela imagem que eu carrego. Todo dia alguém me deslegitima no cargo que eu ocupo. Todo dia a gente sofre micro violências que tentam demonstrar que esse lugar não é para gente.”
Marcelise reforça que a barreira do racismo vem sendo desconstruída, porém, ainda caminha a passos lentos, principalmente no que diz respeito aos cargos de chefia.
“Nas posições de gestão, de liderança […] dentro do Judiciário, ainda é um grande desafio. Somos uma presença muito de diminuta. Ainda precisamos demonstrar que estamos ali pelo nosso valor e não porque estamos preenchendo uma cota ou um espaço que nos foi concedido.”
A queixa de Marcelise pode ser vista em números. Pessoas brancas seguem ainda representando a grande maioria (83,8%) de magistrados da Justiça brasileira.De acordo com o mais recente Diagnóstico Étnico-Racial do poder Judiciário, elaborado pelo CNJ, identificam-se como pessoas pretas apenas 1,7% dos magistrados e magistradas. Já o percentual de juízes que se autointitulam pardos é um pouco maior: 12,8%.
A luta segue
Na tentativa de superar o racismo estrutural, ambas apostam na Justiça como caminho para promover a derrubada de barreiras raciais em espaços de tomada de decisão.
Sheila enfatiza a importância de reavaliar as instituições judiciárias com o objetivo de fomentar a democratização de suas estruturas, buscando, assim, aprimorar o acesso à Justiça.
“Uma população que se vê representada dentro das instituições de Justiça e instituições de Justiça que consigam enxergar a realidade da população vai fazer com que a gente consiga um acesso mais garantido aos direitos previstos na nossa constituição.”
Para isso, Marcelise ressalta a importância de continuar investindo em cotas para concursos para vagas na Justiça, a fim de abarcar mais representações da sociedade.
“O Judiciário pode ajudar muito quando ele abre a possibilidade de uma representação mais ampla dessas populações dentro do seu próprio corpo de magistrados e de lideranças e também quando ele decide as causas com um olhar antirracista.”
Mesmo com tantas barreiras enfrentadas, tanto Marcelise quanto Sheila são categóricas em responder sobre a importância de dar continuidade à luta racial.
“Eu não posso me dar ao luxo de desistir quando outras advogadas, outras juristas, outras pessoas pretas que tiveram muito mais dificuldade do que eu, não desistem. […] Tem muita gente muito boa que não tem espaço, que não tem visibilidade, […] sofrendo discriminação e sofrendo com racismo. Não dá para ficar é vendo isso e não fazer nada e não dizer nada”, destaca Marcelise.
“Isso não é só sobre mim. Não sou só eu que estou sentando nessa cadeira. São todas as mulheres que me antecederam, todos os movimentos que lutaram para que nós estivéssemos aqui. […] Isso é uma causa de impacto coletivo. O que me motiva é que a gente com a caneta na mão a gente pode transformar vidas, a gente pode salvar vidas,” finaliza Sheila.
Fonte: Migalhas
*Imagem:Associação dos Magistrados Brasileiros