quarta-feira, 8 outubro, 2025
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O recuo do GT da Reforma Administrativa com os temporários: vitória do serviço público ou absurdização do discurso?

O que havia sido prometido de ser apresentado em 45 dias foi liberado com um atraso (talvez intencional) de meses: circulou o relatório do Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa com as minutas de proposições legislativas. Mas foi constatado um estranho recuo.

Um dos primeiros textos de Proposta de Emenda à Constituição, com a indicação de autoria do Dep. Pedro Paulo, previa a possibilidade de realização de concurso público para “investidura a termo” em cargo efetivo, com prazo mínimo de 10 (dez) anos. Em outras palavras, tratava-se da tentativa de ampliar, por via transversa, o regime de contratação temporária de servidores, criando uma categoria híbrida que esvazia a lógica constitucional do cargo efetivo.

Mas, logo após, na plataforma oficial da Câmara dos Deputados, formatada para divulgar esses resultados, constatou-se a supressão: a versão atual não apenas não mais carrega indicação de autoria original, como também exclui a tal investidura “a termo” de servidores concursados. Diante disso, há quem considere esse recuo uma vitória da opinião pública e dos movimentos em defesa do serviço público. Mas seria essa retirada uma verdadeira conquista democrática ou apenas mais uma estratégia de controle do discurso?

Em textos anteriores, já havíamos demonstrado como os discursos dos integrantes do GT da Reforma partiam de pressupostos que naturalizavam a lógica empresarial no setor público, frequentemente apresentando o servidor como um entrave à modernização do Estado. Com base na análise crítica do discurso, foi possível afirmar que o GT tentou produzir um discurso que posiciona o servidor efetivo como problema, operando uma recontextualização do serviço público a partir da racionalidade da iniciativa privada. Essa recontextualização ocorre quando se retira um conceito de seu contexto original e o insere em outro, resignificando-o. Assim, princípios constitucionais como a legalidade e a estabilidade passam a ser tratados como obstáculos à eficiência, conceito este descolado da sua possibilidade constitucional para ser reduzido à produtividade medida por uma régua gerencial.

A proposta de contratação a termo poderia ser, portanto, uma externalização radical dessa lógica. Sua supressão não significa, necessariamente, uma inflexão no rumo da reforma. Ao contrário, pode ser vista como uma tentativa de manobrar a Janela de Overton (ou de oportunidades político-discursivas): a introdução de uma proposta extremamente absurda para, em seguida, substituí-la por algo apenas ligeiramente menos radical, tornando esta última mais aceitável. A retirada da investidura a termo cria, assim, a ilusão de moderação, quando o conteúdo restante da proposta mantém, por exemplo, a imposição de avaliações de desempenho com finalidades punitivas para servidores que não se adequem ao modelo de produtividade empresarial, dentre outros absurdos.

Ao suprimir um dos itens mais escandalosos, justamente aquele que parecia resgatar a lógica da famigerada PEC 32/2020, o GT da Reforma Administrativa pode ter buscado reposicionar discursivamente o debate, apresentando-se como aberto ao diálogo e sensível às críticas. Porém, esse movimento pode revelar precisamente as “estratégias retóricas” do discurso político (Fairclough, Discurso e Mudança Social, 2001, p. 221-230): a manipulação discursiva que visa transformar relações de poder em consensos naturalizados. Aliás, com já denunciado, diálogo foi o que faltou verdadeiramente durante os trabalhos do GT, pois foram realizadas audiências públicas sem um texto mínimo para marcar os consensos e dissensos, e as reuniões foram divididas entre segmentos convergentes, o que inviabilizou o efetivo debate entre visões de mundo diferentes.

Não se trata, portanto, de uma renúncia à lógica liberalista que marcou desde o início os discursos do GT da Reforma, mas de sua camuflagem por meio de uma linguagem tecnocrática e supostamente conciliadora (não à toa, consensualidade se torna um novo princípio do art. 37, conforme o texto do GT).

Se a visão for ampliada, a situação é ainda pior. Vale lembrar que o GT também disponibilizou a minuta que busca instituir o marco legal da administração pública brasileira, e lá consta a liberação de cargos temporários em áreas meio e fim, sem o requisito do excepcional e provisório interesse. E próximo ao período original da entrega do relatório (final de junho de 2025), foram apresentados o PL 3069/2025 (Câmara dos Deputados) e o PL 3086/2025 (Senado), idênticos, e tratam da extensão do uso de temporários e contratos de até 6 anos (que podem ser eternizados em blocos de 6 anos) para substituição e extinção de cargos efetivos das carreiras públicas.

O serviço público segue em risco. E, talvez mais perigosa do que a imposição direta de retrocessos, seja a sua dissimulação sob o verniz do diálogo e da escuta da opinião pública. É preciso não apenas resistir, mas desvelar as operações discursivas que sustentam a erosão mascarada da Administração Pública constitucional, conforme a intenção atemporal da Carta de 1988. A vitória é parcial, ou ilusória. O discurso permanece em disputa.

Foto/Crédito: Escritório Cassel Ruzzarin Advogados

Fonte: https://servidor.adv.br/atuacoes/o-recuo-do-gt-da-reforma-administrativa-com-os-temporarios-vitoria-do-servico-publico-ou-absurdizacao-do-discurso/766?_gl=1*1j270ya*_gcl_au*MTAwMjU3Njg2Ny4xNzU5OTMzODk0

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