Escrito por Cristina Gemaque – Blog de Lucio Flavio Pinto
Trump: mais poderoso do que Luís XIV
No livro “As coisas são assim: pequeno repertório científico do mundo que nos cerca”, que reúne ensaios de vários cientistas e pensadores, há uma carta que Richard Dawkins escreveu para sua filha Juliet em que ele diz que as provas são uma boa razão para se acreditar em algo e que a tradição, a revelação e a autoridade são más razões.
Em linhas gerais, ele diz que acreditar em algo devido à tradição significa acreditar em coisas porque elas foram transmitidas por longo tempo na história. A revelação, para ele, é uma sensação que pessoas religiosas têm de algo e que, por conta unicamente disso, passam a acreditar que seja verdade.
Por fim, acreditar em algo porque uma autoridade ordena que você acredite, e obedecer ao que a autoridade diz só porque é um líder religioso ou um presidente, podem trazer consequências desastrosas.
Vou voltar no tempo. O ano era 1598. William Harvey frequentava um albergue, em Pádua, onde desfrutava da companhia de um jovem professor chamado Galileu, que falava de um mundo vanguardista descrito por um certo cônego chamado Nicolau Copérnico. Galileu dizia aos companheiros de mesa para refletirem de forma diferente, advertindo que frequentemente nos enganamos por observar na direção errada, e os exortava a experimentarem por si mesmos, como ele próprio tinha feito na torre de Pisa e na cúpula de Florença.
Influenciado por esses pensamentos, Harvey fez experimentos que culminaram com suas descobertas sobre a circulação sanguínea; antes disso se acreditava na teoria de Galeno de que o sangue era produzido pelo fígado. Publicou seu livro na Alemanha, em 1628, causando enorme furor, pois o mundo acadêmico da Europa defendia unanimemente as teorias galenistas.
Anos depois, essa discussão ainda era acirrada, irritando Luís XIV que, para acabar com a querela entre os circuladores e anti-circuladores, conversou com o cirurgião da rainha – que acreditava na teoria de Harvey – e impôs que seria ensinada a anatomia conforme o revolucionário sistema circulatório de Harvey, que o descreveu como tal como o conhecemos atualmente.
Retornando a 2025. A ciência entende a diferença entre os sexos como um fenômeno da mais alta complexidade, que envolve fatores genéticos, hormonais e celulares; isso só no aspecto biológico da questão, sem mencionar os fatores culturais. Ora, nada disso importa para quem acredita em algo apenas baseado no que uma autoridade determinou, uma das más razões descritas por Dawkins.
Pelos poderes de Grayskull, como no desenho animado He-Man, o presidente Trump adquiriu uma força superpoderosa que decide até a biologia de seus governados, determinando que agora só existem dois sexos, inexistindo os demais.
A ciência sendo ignorada pela política desta forma é coisa séria, pois afeta os programas de defesa de direitos humanos e reduz o espaço de pessoas LGBT+, entre outras coisas.
O poder de Luís XIV era fichinha perto do de Trump!
*Foto: rawpixel.com