Em 17 de junho de 1962, o Brasil conquistou o bicampeonato na Copa do Mundo, em um 3 a 1 de virada contra a Tchecoslováquia. Naquele ano, a classe trabalhadora obteve uma importante vitória: a do 13º salário, gratificação garantida em lei sancionada em 13 de julho de 1962, depois de oito anos de mobilizações e greves, que culminaram em uma greve geral.
Essas histórias de luta fortalecem o 1º de Maio, Dia do Trabalhador e da Trabalhadora, que neste ano, em Porto Alegre, será comemorado com um ato político-cultural na Casa do Gaúcho, a partir das 14h, com entrada gratuita, unindo cultura e música com a pauta de reivindicações atuais da classe, como redução da jornada, fim da escala 6×1 e taxação dos super-ricos.
Assim como atualmente são atacadas as propostas de fim da escala 6×1 e redução da jornada, a luta pelo 13º enfrentou muita oposição de empresários, do mercado financeiro da época e da mídia. Um exemplo é a manchete do jornal O Globo, de 26 de abril de 1962: “Considerado desastroso para o País um 13º mês de salário”. O desastre não veio, e hoje 92,2 milhões de trabalhadores e trabalhadoras recebem o rendimento adicional, segundo o Dieese, injetando mais de R$ 321 bilhões na economia em 2024.
A BBC publicou uma matéria que relembra os principais episódios da conquista do 13º salário. “O 13º salário é um desses casos de reivindicação surgida no chão da fábrica, legitimada nas relações costumeiras entre patrões e empregados em algumas firmas, transformada em lei às custas de greves, demissões, abaixo-assinados, prisões e cuja memória é depois ofuscada pelo brilho da lei que supõe-se, como toda lei, deve ter sido iniciativa de algum presidente, deputado ou senador”, escreve o historiador Murilo Leal Pereira Neto.
Origem da gratificação e mobilizações no Brasil
A gratificação de Natal tem origem em países de maioria cristã, onde alguns patrões costumavam presentar os funcionários com cestas de alimentos na época das festas de fim de ano. A doação passou de voluntária a obrigatória na Itália em 1937, durante o regime fascista de Benito Mussolini, prevendo um mês adicional de salário para os empregados das fábricas. Em 1946, a gratificação foi estendida às demais categorias de trabalhadores italianos, sendo consolidada por um decreto presidencial em 1960.
No Brasil, os primeiros registros de greves e demandas pelo abono de Natal são de 1921, na Cia. Paulista de Aniagem e na indústria Mariângela, empresas do setor têxtil. O benefício não constava na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada em 1943, mas, no mesmo ano, o abono de Natal foi conquistado pelos trabalhadores da fabricante de pneus Pirelli, o que levaria a uma greve geral no ano seguinte em Santo André (SP) pelo pagamento do benefício.
“Na onda de greves que se alastrou de dezembro de 1945 a março de 1946, a luta pelo prêmio de final de ano era a principal reivindicação na maioria delas, envolvendo categorias como ferroviários da Sorocabana, trabalhadores da Light, tecelões, metalúrgicos, gráficos e químicos em São Paulo”, lembra Pereira Neto, em sua tese de doutorado, “A reinvenção do trabalhismo no ‘vulcão do inferno’: um estudo sobre metalúrgicos e têxteis de São Paulo”.
“Os patrões ganhavam aquele dinheiro no fim do ano, tudo, chegava e dava um panetone e dava um vinho ruim pro cara. Então nós mostramos a realidade: o trabalhador também precisava passar um Natal melhor”, conta João Miguel Alonso, líder metalúrgico, em depoimento recuperado por Pereira Neto, sobre os argumentos usados com os patrões à época. Alonso conta: “Nós sempre levantávamos esse problema desde antes […] ‘Oh, meu deus do céu, vocês têm que entender, vocês não vão dar a empresa para eles, vocês vão dar apenas o essencial para esse coitado viver, passar um Natal melhor com a família’”.
No artigo “Abono de Natal: gorjeta, prêmio ou direito? Trabalhadores têxteis e a justiça do trabalho”, Larissa Rosa Corrêa, professora do Departamento de História da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), resgata o relato do líder sindicalista Antonio Chamorro.
Ele conta que, quando era operário numa fábrica têxtil em 1946, a primeira vez que os trabalhadores reivindicaram ao patrão uma gratificação de fim de ano, receberam em troca sacos de laranja. No ano seguinte, pediram cortes de tecido no lugar das laranjas, mas receberam panos considerados de má qualidade e muito quentes para o final de ano. No ano seguinte, os trabalhadores reivindicaram um tecido mais leve e adequado ao verão. “Aí ele [o patrão] cedeu. Foi uma outra vitória nossa.”
“É interessante observar como os trabalhadores organizados aproveitavam todas as brechas deixadas pelos patrões”, observa a professora da PUC-Rio. “No caso relatado, o empregador cedeu uma vez; na próxima ele não teve argumentos para não fornecer o benefício novamente, e, desta vez, a gratificação teria que ser melhor, e assim por diante”.
A greve de 1961
Em 1951, um projeto do deputado Muniz Falcão (PSP-AL) sobre a gratificação natalina foi considerado inconstitucional pela Comissão de Constituição da Câmara. Em 1959, um novo projeto foi apresentado pelo deputado Aarão Seteinbruch (PTB-RJ), já num cenário de acúmulo de lutas por esse direito no chão de fábrica. Assim, já a partir de 1960, a mobilização se concentra em pressionar o Congresso pela aprovação da lei. Em 13 de dezembro de 1961, os trabalhadores fazem greve pelo abono de Natal, com a mobilização puxada pelos sindicatos dos metalúrgicos e dos têxteis de São Paulo.
“A greve foi um resultado de um processo de luta que durou cerca de oito anos. Durante todos os anos passados, o abono de Natal tinha constado das listas de reivindicações nos dissídios coletivos e sido pauta nas assembleias dos sindicatos”, escreve Larissa Corrêa. “Os trabalhadores tinham consciência de que a gratificação jamais seria fruto das negociações com os patrões e muito menos de uma decisão da Justiça do Trabalho”, aponta ela, citando avaliação de Afonso Delellis, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, cassado pelo golpe de 1964.
A greve foi duramente reprimida, com ao menos 1.300 presos, 50 sindicalistas detidos e o Sindicato dos Metalúrgicos cercado e mantido incomunicável pela polícia. No dia 12, o ministro da Justiça, Alfredo Nasser, declarou o movimento grevista ilegal. A Câmara dos Deputados, que havia aprovado o projeto em primeira votação, entrou em recesso, alegando estar sendo coagida e adiando a segunda votação, relata Pereira Neto.
Após a greve, a Fiesp recomendou que seus membros pagassem voluntariamente o abono, em um boletim de dezembro de 1961, mas não admitia a aprovação do projeto de lei, acusando o governo de demagogia por apoiá-lo, lembra o professor da Unifesp. O projeto só seria aprovado em segundo turno na Câmara em 24 de abril de 1962 e, no Senado, em 27 de junho. Mas ainda faltava a sanção presidencial. E então veio a greve geral de 5 de julho de 1962.
A greve geral de 1962
Em meio à pressão crescente, o primeiro-ministro Tancredo Neves renuncia. Para substituí-lo, João Goulart indica San Tiago Dantas, apoiado pela esquerda do Congresso e pelo movimento sindical, mas sua indicação foi vetada pelos conservadores. Em resposta ao veto e à indicação para o cargo do conservador Auro de Moura Andrade, o movimento sindical convoca a greve geral de 5 de julho, deflagrada logo após a conquista do bicampeonato de futebol.
“A greve, deflagrada 18 dias após o Brasil conquistar o bicampeonato mundial de futebol – o que desmente análises rasteiras que vinculam os sucessos no futebol a uma ‘apatia sócio-política’ da população –, afetou sobretudo empresas estatais ou sob controle do governo, embora o setor privado não tenha passado incólume”. A avaliação é de Rubens Goyatá Campante, doutor em sociologia e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT3, no artigo “O 13º veio de uma greve geral”.
A greve se estendeu por vários estados e, Rio de Janeiro, teria grandes impactos. Diante da paralisação dos trens, em meio ao avanço da fome e à crise econômica, a Baixada Fluminense foi palco de uma onda de saques, que deixaria 42 mortos, 700 feridos e mais de 2 mil estabelecimentos atingidos. Diante desse quadro, uma comissão de líderes do comando nacional de greve foi a Brasília, com o objetivo de conversar com João Goulart sobre a crise política nacional e pressionar pelas reivindicações da greve. O presidente se comprometeu a assinar a lei do 13º salário, o que ocorreu em 13 de julho, quando foi sancionada a lei 4.090/1962.
Somente com a Constituição de 1988 o direito foi formalmente estendido aos servidores
Inicialmente, a lei só dava direito ao 13º aos empregados urbanos do setor privado. Trabalhadores rurais e servidores públicos não eram contemplados, lembra o Dieese. Em 1963, João Goulart estendeu o direito a aposentados e aposentadas. Em 1965, já na ditadura, foi sancionada lei estabelecendo o pagamento em duas parcelas, sendo a primeira entre fevereiro e novembro, e a segunda, até 20 de dezembro de cada ano. Com a Constituição de 1988, o direito foi garantido a todas as trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais e estendido aos servidores públicos por meio da emenda constitucional 19 naquele mesmo ano.
“Para nós hoje, o processo de conquista do 13º causa estranheza”, avalia Larissa Corrêa. “Estamos vivendo um contexto de alta precarização do trabalho e aquelas lutas dos anos 1960 parecem quase um outro mundo para a gente, haja visto a reforma trabalhista e todo o processo de terceirização das relações de trabalho. Mas é curioso também que, na reforma trabalhista de 2017, a lei do 13º permaneceu intocada. Isso diz muito sobre o patrimônio das leis trabalhistas e o que elas representam até hoje”, acrescenta a historiadora.
Para Pereira Neto, o principal aprendizado da conquista do 13º salário é que as leis trabalhistas “não nascem no Congresso”. Segundo ele, “temos uma ideia no Brasil de que as conquistas trabalhistas não são conquistas, são um favor. Há um modelo interpretativo de que o Estado ou a classe dominante fazem concessões, ao invés de reconhecer direitos”. No entanto, a luta pelo 13º mostra que essas pautas até podem começar como um favor das empresas aos funcionários, “mas elas se constituem como um direito no percurso da experiência. E esse direito, antes de se transformar em lei, vai sendo legitimado na sociedade. Então existe uma construção política do direito”.
Para Larissa Corrêa, a estratégia dos sindicatos na luta pelo 13º também deixa um aprendizado: “o movimento sindical naquele contexto atuava nas duas frentes: tanto na parte jurídica, parlamentar, quanto nas greves e nos movimentos de rua. Eles não apostavam no projeto de lei sem deixar de fazer greve. Isso era uma estratégia muito importante e, de fato, foi bem-sucedida”.
Foto/Crédito: Sintrajufe/RS / Reprodução
Com informações da BBC
Fonte: Sintrajufe/RS