Análise das preocupações e críticas dos servidores a partir do relatório final do GT da Reforma Administrativa
Por Jean P. Ruzzarin
Do ponto de vista da advocacia em defesa dos servidores, há dois movimentos que se impõem antes de qualquer análise estritamente jurídica. O primeiro é o de mapear os interesses, expectativas e receios da categoria, não apenas como reivindicações corporativas, mas como parte de uma disputa sobre o modelo de Estado que se pretende preservar ou alterar. O segundo é o de confrontar essas pautas com o relatório final do GT, para verificar se houve acolhimento, ignorância ou distorção de tais preocupações. Só a partir dessa leitura político-institucional, que revela as conotações mais profundas das propostas, será possível dar sentido jurídico consistente às normas projetadas. É esse o objetivo preliminar deste artigo: analisar se as críticas dos servidores têm fundamento quando cotejadas com o desenho da reforma exposto no relatório final.
O relatório final do Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa estrutura-se em torno de quatro grandes eixos: Estratégia, Governança e Gestão; Transformação Digital; Profissionalização do Serviço Público; e Extinção de Privilégios. Cada eixo concentra um conjunto de medidas – ao todo, cerca de 70 propostas legislativas e constitucionais – que pretendem redesenhar a administração pública brasileira. O discurso oficial do GT é de que se trata de uma reforma “de Estado”, de longo prazo, destinada a tornar o serviço público mais eficiente, transparente e voltado ao cidadão, substituindo a lógica burocrática por uma lógica de resultados.
No Eixo 1, propõe-se a adoção obrigatória de planejamento estratégico para todos os entes da Federação, acordos de resultados e bônus por desempenho, além de maior poder aos tribunais de contas na fiscalização da gestão. O Eixo 2 foca na digitalização ampla, criação de plataformas e serviços eletrônicos. O Eixo 3 trata da reorganização de carreiras, estágio probatório remodelado, ampliação de níveis de progressão e instituição de uma tabela remuneratória unificada, além do concurso nacional unificado. Já o Eixo 4 se concentra no enfrentamento a privilégios, buscando revisar desigualdades internas ao serviço público e propor limites a benefícios considerados excessivos.
Feita essa contextualização, o método adotado neste artigo será indicar as críticas e preocupações mais conhecidas dos servidores públicos e, em seguida, verificar se o relatório final do GT as contempla ou não. Trata-se, portanto, de um exercício comparativo: primeiro, expor o que os servidores apontam como riscos; depois, confrontar essas percepções com o conteúdo efetivamente registrado no relatório, de modo a iluminar convergências, omissões e tensões. Esse passo é indispensável para compreender o sentido político-institucional da proposta antes de se avançar, em artigos posteriores, para uma análise estritamente jurídica.
Ao cotejar essas preocupações com o relatório do GT, percebe-se que a retórica da eficiência e da flexibilidade coincide com esse movimento. No Eixo 3 – Profissionalização, propõe-se a investidura a termo, por concurso, com prazo de até dez anos, e são detalhadas novas regras para temporários e terceirizados, reconhecendo inclusive a expansão acelerada desses vínculos. Além disso, em trechos do eixo de governança, o relatório enfatiza revisões periódicas de gastos e a realocação de recursos como prioridade, o que reforça a ideia de que a lógica fiscal se sobrepõe à manutenção de estruturas públicas sólidas. Assim, embora sob outra linguagem, o relatório confirma pontos centrais da crítica sindical: a reforma não fortalece o Estado, mas sinaliza sua retração e reconfiguração em moldes mais frágeis e privatizados.
O relatório do GT ecoa essa retórica ao tratar do Eixo 4 – Extinção de Privilégios, listando explicitamente benefícios como férias de 60 dias, adicionais de tempo de serviço, verbas indenizatórias disfarçadas e pecúnia de férias como exemplos de distorções a serem combatidas. Também utiliza a noção de “supersalários” para apontar a “grande disparidade de determinados benefícios”, que gerariam impacto fiscal e dano à imagem do serviço público. Ao mesmo tempo, o texto associa a estabilidade a uma proteção “excessiva”, reforçando a necessidade de vinculá-la a avaliações de desempenho regulares. Assim, ainda que em tom técnico, o relatório reforça a visão de que o problema está no próprio regime atual, endossando a narrativa pública que generaliza casos excepcionais e abre espaço para reformas com alcance muito mais amplo do que o discurso sugere.
O relatório do GT, ainda que não utilize essa linguagem, confirma a centralidade da disciplina fiscal como parâmetro da reforma. No Eixo 1 – Estratégia, Governança e Gestão, a “revisão de gastos” é tratada como condição essencial para estabilizar as contas, citando déficits recorrentes desde 2015 e o crescimento das despesas obrigatórias. Além disso, destaca os riscos fiscais decorrentes de variações de inflação e juros, relacionando-os ao peso das despesas previdenciárias e de pessoal, hoje estimadas em R$ 438 bilhões. A mesma área propõe mecanismos de limitação de despesas de órgãos autônomos e de racionalização administrativa municipal, inspirados no novo arcabouço fiscal. Assim, embora descrito em termos técnicos de governança e eficiência, o relatório reafirma que a prioridade macroeconômica é o controle de gastos, em detrimento da expansão de políticas públicas — validando, sob outra ótica, a preocupação de que o orçamento social esteja subordinado à lógica financeira.
O relatório do GT confirma esse movimento ao propor, no Eixo IX – Nova Carreira do Serviço Público, a reorganização das carreiras em blocos transversais, com maior mobilidade e progressão vinculada a desempenho. Além disso, introduz a ideia de “vínculo estatutário por tempo determinado”, justificando que certas demandas seriam transitórias e poderiam ser atendidas com contratações temporárias, sem os custos e garantias associados ao servidor efetivo. Essa concepção amplia as hipóteses de vínculos precários e sinaliza uma diminuição do concurso público como regra de ingresso, reforçando a preocupação dos servidores de que a estabilidade e a permanência das carreiras estejam sendo diluídas em nome de maior “flexibilidade” e de ajustes fiscais de curto prazo.
O relatório do GT, por outro lado, trata a estabilidade sob uma ótica condicionada à eficiência. Ele afirma que o instituto da avaliação de desempenho deve servir para “conciliar a garantia da estabilidade com a busca pela eficiência administrativa”, atribuindo-lhe caráter de contrapartida à permanência. Nos trechos dedicados ao estágio probatório, a crítica é explícita: o diagnóstico aponta que ele seria “inoperante”, funcionando apenas como um lapso temporal para a confirmação automática da estabilidade. A proposta apresentada busca endurecer regras, padronizar instrumentos e associar a aquisição da estabilidade ao cumprimento de metas de desempenho definidas por portarias e decretos recentes. A retórica de meritocracia e accountability, portanto, sugere que a estabilidade passará a depender mais de indicadores de produtividade do que de sua função protetiva de impessoalidade e continuidade. Dessa forma, articula-se um nexo direto com os pontos anteriores: ao lado da flexibilização dos vínculos e da expansão de contratações temporárias, a estabilidade passa a ser reformulada como um privilégio condicional e não como garantia institucional.
Essa ênfase, contudo, é identificada por muitos servidores como uma denúncia já conhecida na prática cotidiana: o PGD seria o laboratório vivo da reforma. Dirigentes e entidades relatam que a lógica de transformar o trabalho em números, fixando metas diárias e responsabilizando individualmente os servidores por falhas muitas vezes sistêmicas, tem resultado em assédio institucional e adoecimento organizacional. O argumento baseado na realidade é que esse modelo gera sobrecarga, compromete a qualidade do atendimento e inverte a lógica republicana do serviço público, deslocando-a para um regime de pressão individualizada e competição permanente. O que o relatório descreve como avanço cultural e de eficiência é visto, no funcionalismo organizado, como a confirmação de uma ameaça já instalada no cotidiano de trabalho.
Na prática, o risco está em confundir cooperação técnica com desestruturação de percursos profissionais. Ao invés de valorizar a experiência acumulada e a formação específica, a proposta pode resultar em deslocamentos sucessivos que comprometem tanto a qualidade das políticas públicas quanto a motivação dos servidores. Assim, se a transversalidade pode ser legítima como política de integração em setores estratégicos, sua aplicação genérica às carreiras de base reforça a crítica de precarização: carreiras sem identidade, servidores sem horizonte e serviços públicos prestados por quadros versáteis, porém desprovidos da profundidade necessária.
Esse cotejo reforça a importância de compreender as reformas administrativas não apenas pela ótica normativa, mas também em sua dimensão política e institucional. Dirigentes sindicais apontam com insistência a lógica fiscalista que subordina o orçamento social à dívida, a mercantilização de serviços essenciais e a estigmatização dos servidores como “privilegiados” — narrativas que se difundem no debate público e encontram eco, ainda que suavizado, no texto do relatório. Mais do que ruído discursivo, tais críticas revelam uma leitura política atenta da direção em que a reforma pretende avançar: uma reconfiguração do vínculo público capaz de fragilizar a impessoalidade, a continuidade e a autonomia técnica da administração.
Por isso, a interpretação técnico-jurídica que se fará em momento subsequente somente terá utilidade se estiver ancorada na compreensão das críticas políticas e dos riscos institucionais confirmados pelo relatório. Essa etapa preliminar é decisiva: reconhecer que as preocupações dos servidores não apenas têm fundamento, mas estão refletidas no próprio desenho da reforma, permite orientar uma atuação jurídica mais lúcida e eficaz, apta a se articular não apenas nos tribunais, mas também no debate público sobre o modelo de Estado que se pretende preservar.
Introdução
A reforma administrativa voltou ao centro da agenda política nacional com a divulgação do Relatório Final do Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados, reacendendo no funcionalismo público temores que não se dissiparam desde a tramitação da PEC 32/2020. Embora o GT tenha buscado uma roupagem de modernização e eficiência, a percepção predominante entre servidores e entidades representativas é de que o processo se desenvolveu com escasso diálogo e com risco de reproduzir – agora em capítulos fragmentados – os mesmos efeitos estruturais de enfraquecimento do Estado. Para compreender o alcance dessas preocupações, é preciso ouvi-las em seu próprio registro, como se expressaram em assembleias, congressos e encontros sindicais desde a instalação do GT: vozes que apontam para a corrosão gradual de garantias históricas, para a precarização institucionalizada das carreiras e para o deslocamento de políticas públicas essenciais para arranjos privados.
Do ponto de vista da advocacia em defesa dos servidores, há dois movimentos que se impõem antes de qualquer análise estritamente jurídica. O primeiro é o de mapear os interesses, expectativas e receios da categoria, não apenas como reivindicações corporativas, mas como parte de uma disputa sobre o modelo de Estado que se pretende preservar ou alterar. O segundo é o de confrontar essas pautas com o relatório final do GT, para verificar se houve acolhimento, ignorância ou distorção de tais preocupações. Só a partir dessa leitura político-institucional, que revela as conotações mais profundas das propostas, será possível dar sentido jurídico consistente às normas projetadas. É esse o objetivo preliminar deste artigo: analisar se as críticas dos servidores têm fundamento quando cotejadas com o desenho da reforma exposto no relatório final.
O relatório final do Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa estrutura-se em torno de quatro grandes eixos: Estratégia, Governança e Gestão; Transformação Digital; Profissionalização do Serviço Público; e Extinção de Privilégios. Cada eixo concentra um conjunto de medidas – ao todo, cerca de 70 propostas legislativas e constitucionais – que pretendem redesenhar a administração pública brasileira. O discurso oficial do GT é de que se trata de uma reforma “de Estado”, de longo prazo, destinada a tornar o serviço público mais eficiente, transparente e voltado ao cidadão, substituindo a lógica burocrática por uma lógica de resultados.
No Eixo 1, propõe-se a adoção obrigatória de planejamento estratégico para todos os entes da Federação, acordos de resultados e bônus por desempenho, além de maior poder aos tribunais de contas na fiscalização da gestão. O Eixo 2 foca na digitalização ampla, criação de plataformas e serviços eletrônicos. O Eixo 3 trata da reorganização de carreiras, estágio probatório remodelado, ampliação de níveis de progressão e instituição de uma tabela remuneratória unificada, além do concurso nacional unificado. Já o Eixo 4 se concentra no enfrentamento a privilégios, buscando revisar desigualdades internas ao serviço público e propor limites a benefícios considerados excessivos.
Feita essa contextualização, o método adotado neste artigo será indicar as críticas e preocupações mais conhecidas dos servidores públicos e, em seguida, verificar se o relatório final do GT as contempla ou não. Trata-se, portanto, de um exercício comparativo: primeiro, expor o que os servidores apontam como riscos; depois, confrontar essas percepções com o conteúdo efetivamente registrado no relatório, de modo a iluminar convergências, omissões e tensões. Esse passo é indispensável para compreender o sentido político-institucional da proposta antes de se avançar, em artigos posteriores, para uma análise estritamente jurídica.
Modernização como demolição do Estado social
Entre dirigentes sindicais, ouve-se com frequência que a chamada “modernização” da administração pública nada mais é do que uma forma de reduzir o Estado à condição de mero financiador de serviços, deixando sua execução a cargo de arranjos privados e vínculos precários. Essa crítica é contundente: a reforma seria, na prática, uma demolição do Estado social, fragilizando carreiras estáveis, desestruturando a prestação de serviços essenciais e empurrando saúde, previdência e educação para a lógica mercantil. O diagnóstico sindical não se limita a receios abstratos, mas parte da constatação de que medidas já adotadas – como a multiplicação de contratos temporários e a expansão das OSs – apontam para a substituição progressiva do servidor de carreira por vínculos frágeis e mais vulneráveis a pressões políticas e econômicas.
Ao cotejar essas preocupações com o relatório do GT, percebe-se que a retórica da eficiência e da flexibilidade coincide com esse movimento. No Eixo 3 – Profissionalização, propõe-se a investidura a termo, por concurso, com prazo de até dez anos, e são detalhadas novas regras para temporários e terceirizados, reconhecendo inclusive a expansão acelerada desses vínculos. Além disso, em trechos do eixo de governança, o relatório enfatiza revisões periódicas de gastos e a realocação de recursos como prioridade, o que reforça a ideia de que a lógica fiscal se sobrepõe à manutenção de estruturas públicas sólidas. Assim, embora sob outra linguagem, o relatório confirma pontos centrais da crítica sindical: a reforma não fortalece o Estado, mas sinaliza sua retração e reconfiguração em moldes mais frágeis e privatizados.
Narrativa pública esconde a realidade do funcionalismo
Uma crítica recorrente dos dirigentes sindicais é de que a narrativa pública em defesa da reforma administrativa se ancora em slogans que não refletem a realidade do funcionalismo. Expressões como “fim de privilégios”, “Estado caro” e “supersalários” são usadas como justificativa para medidas estruturais, quando, na prática, referem-se a situações excepcionais — férias de 60 dias, remunerações acima do teto constitucional ou adicionais acumulados por pequenas parcelas da elite do funcionalismo. A grande maioria dos servidores, lembram as entidades, recebe salários médios que não se aproximam desses estereótipos, exercendo funções essenciais em condições muitas vezes de sobrecarga e falta de estrutura. A crítica é contundente: o discurso político seleciona casos extremos para legitimar mudanças que atingirão indistintamente todo o corpo de servidores, contribuindo para estigmatizar a função pública perante a sociedade.
O relatório do GT ecoa essa retórica ao tratar do Eixo 4 – Extinção de Privilégios, listando explicitamente benefícios como férias de 60 dias, adicionais de tempo de serviço, verbas indenizatórias disfarçadas e pecúnia de férias como exemplos de distorções a serem combatidas. Também utiliza a noção de “supersalários” para apontar a “grande disparidade de determinados benefícios”, que gerariam impacto fiscal e dano à imagem do serviço público. Ao mesmo tempo, o texto associa a estabilidade a uma proteção “excessiva”, reforçando a necessidade de vinculá-la a avaliações de desempenho regulares. Assim, ainda que em tom técnico, o relatório reforça a visão de que o problema está no próprio regime atual, endossando a narrativa pública que generaliza casos excepcionais e abre espaço para reformas com alcance muito mais amplo do que o discurso sugere.
Captura do orçamento pela dívida pública
Muitos servidores observam que a política fiscal no Brasil vem sendo orientada por uma lógica que privilegia o pagamento da dívida pública em detrimento do investimento em políticas sociais. Para eles, a recorrente alegação de que “faltam recursos” serve mais como argumento político do que como retrato fiel da realidade orçamentária, já que convivemos com reservas internacionais elevadas e vultosos mecanismos financeiros. A consequência prática dessa opção, segundo apontam, é a compressão do orçamento social, especialmente em pessoal, saúde, educação e assistência, o que enfraquece a capacidade do Estado de garantir direitos de forma contínua e universal.
O relatório do GT, ainda que não utilize essa linguagem, confirma a centralidade da disciplina fiscal como parâmetro da reforma. No Eixo 1 – Estratégia, Governança e Gestão, a “revisão de gastos” é tratada como condição essencial para estabilizar as contas, citando déficits recorrentes desde 2015 e o crescimento das despesas obrigatórias. Além disso, destaca os riscos fiscais decorrentes de variações de inflação e juros, relacionando-os ao peso das despesas previdenciárias e de pessoal, hoje estimadas em R$ 438 bilhões. A mesma área propõe mecanismos de limitação de despesas de órgãos autônomos e de racionalização administrativa municipal, inspirados no novo arcabouço fiscal. Assim, embora descrito em termos técnicos de governança e eficiência, o relatório reafirma que a prioridade macroeconômica é o controle de gastos, em detrimento da expansão de políticas públicas — validando, sob outra ótica, a preocupação de que o orçamento social esteja subordinado à lógica financeira.
Mercantilização dos serviços
Uma crítica comum entre os servidores é que a reforma administrativa, sob o discurso da eficiência, esconde um objetivo implícito de mercantilização dos serviços públicos. O receio é que atividades essenciais, como saúde e educação, passem a ser prestadas por organizações sociais, contratos temporários ou terceirizações, transformando direitos sociais em mercadorias sujeitas a metas de produtividade e lógicas de custo. Essa percepção se confirma ao examinar o relatório do GT: no Eixo 3 – Profissionalização, a Área XI trata das novas regras de contratação temporária, destacando que entre 2017 e 2023 caiu o número de servidores efetivos e cresceu fortemente a participação de vínculos temporários, o que implica substituição gradual do corpo estável por formas mais frágeis e flexíveis de contratação. Além disso, a proposta de incentivo à transversalidade de carreiras prevê a mobilidade compulsória de servidores entre órgãos e funções , reforçando a tendência de flexibilização e esvaziamento de vínculos permanentes. Nesse sentido, ainda que apresentada como modernização, a diretriz do relatório coincide com o temor de que a reforma pavimente a substituição de estruturas públicas duradouras por arranjos contratuais de curto prazo, típicos da lógica de mercado.
Flexibilização do vínculo público
Neste mesma linha, uma das denúncias dos servidores é que a reforma administrativa acabe por flexibilizar o vínculo público, abrindo espaço para a ampliação de contratações fora do regime estatutário e, com isso, esvaziando gradualmente as carreiras típicas de Estado. O temor é de que, mantido o concurso como mera exceção, os atuais servidores se tornem integrantes de “carreiras em extinção”, sem novos ingressos, o que comprometeria a paridade, a continuidade institucional e abriria maior espaço para práticas de apadrinhamento político. Essa percepção se conecta diretamente com a leitura crítica de que a reforma cria um “Estado paralelo”, sustentado por vínculos frágeis e temporários, menos protegidos e mais vulneráveis a interferências.
O relatório do GT confirma esse movimento ao propor, no Eixo IX – Nova Carreira do Serviço Público, a reorganização das carreiras em blocos transversais, com maior mobilidade e progressão vinculada a desempenho. Além disso, introduz a ideia de “vínculo estatutário por tempo determinado”, justificando que certas demandas seriam transitórias e poderiam ser atendidas com contratações temporárias, sem os custos e garantias associados ao servidor efetivo. Essa concepção amplia as hipóteses de vínculos precários e sinaliza uma diminuição do concurso público como regra de ingresso, reforçando a preocupação dos servidores de que a estabilidade e a permanência das carreiras estejam sendo diluídas em nome de maior “flexibilidade” e de ajustes fiscais de curto prazo.
Estabilidade como garantia do interesse público
A estabilidade dos servidores públicos é frequentemente descrita por eles como uma barreira protetiva essencial contra pressões políticas e interesses particulares, e não como um privilégio. Recordam que, em momentos críticos, como durante a pandemia ou em investigações de corrupção, a atuação de servidores estáveis foi decisiva para a denúncia de irregularidades e para a preservação do interesse público. Nesse sentido, a estabilidade aparece como um mecanismo que assegura continuidade administrativa, autonomia técnica e coragem institucional, justamente por proteger o servidor de demissões arbitrárias ou de perseguições derivadas de conjunturas políticas. É por isso que muitos afirmam que fragilizar a estabilidade equivale a fragilizar a capacidade do Estado de cumprir seu papel republicano.
O relatório do GT, por outro lado, trata a estabilidade sob uma ótica condicionada à eficiência. Ele afirma que o instituto da avaliação de desempenho deve servir para “conciliar a garantia da estabilidade com a busca pela eficiência administrativa”, atribuindo-lhe caráter de contrapartida à permanência. Nos trechos dedicados ao estágio probatório, a crítica é explícita: o diagnóstico aponta que ele seria “inoperante”, funcionando apenas como um lapso temporal para a confirmação automática da estabilidade. A proposta apresentada busca endurecer regras, padronizar instrumentos e associar a aquisição da estabilidade ao cumprimento de metas de desempenho definidas por portarias e decretos recentes. A retórica de meritocracia e accountability, portanto, sugere que a estabilidade passará a depender mais de indicadores de produtividade do que de sua função protetiva de impessoalidade e continuidade. Dessa forma, articula-se um nexo direto com os pontos anteriores: ao lado da flexibilização dos vínculos e da expansão de contratações temporárias, a estabilidade passa a ser reformulada como um privilégio condicional e não como garantia institucional.
PGD, metas e adoecimento organizacional
O relatório do GT confirma a centralidade do Programa de Gestão e Desempenho (PGD) como instrumento estruturante da reforma. Ele prevê que atividades da administração direta e indireta, em todas as esferas, sejam avaliadas em função da efetividade e da qualidade das entregas, com base em indicadores definidos para cada órgão. Essa lógica é complementada pelo Ciclo de Gestão de Pessoas, que apresenta a avaliação de desempenho e a meritocracia como mecanismos para superar práticas patrimonialistas e clientelistas, vinculando a própria estabilidade ao cumprimento de metas e resultados. O relatório, portanto, legitima o modelo de gestão orientado por metas e produtividade, situando-o como política central da profissionalização do serviço público.
Essa ênfase, contudo, é identificada por muitos servidores como uma denúncia já conhecida na prática cotidiana: o PGD seria o laboratório vivo da reforma. Dirigentes e entidades relatam que a lógica de transformar o trabalho em números, fixando metas diárias e responsabilizando individualmente os servidores por falhas muitas vezes sistêmicas, tem resultado em assédio institucional e adoecimento organizacional. O argumento baseado na realidade é que esse modelo gera sobrecarga, compromete a qualidade do atendimento e inverte a lógica republicana do serviço público, deslocando-a para um regime de pressão individualizada e competição permanente. O que o relatório descreve como avanço cultural e de eficiência é visto, no funcionalismo organizado, como a confirmação de uma ameaça já instalada no cotidiano de trabalho.
Teletrabalho sem contrapartida e redução remuneratória indireta
O teletrabalho é frequentemente criticado por implicar uma transferência silenciosa de custos ao trabalhador — energia, internet, mobiliário e equipamentos — sem qualquer mecanismo de compensação, o que se traduz em redução remuneratória indireta. Além disso, o regime remoto tende a gerar volume invisível de trabalho, fora da jornada regular, sem pagamento de hora extra, acentuando a sobrecarga. O relatório do GT, entretanto, enquadra o chamado Ambiente de Trabalho Moderno como eixo de inovação e aposta na digitalização e no trabalho remoto como instrumentos de economia e flexibilidade, sem qualquer referência a compensações financeiras ou proteção contra abusos, reforçando a percepção de que a “modernização” pode significar, na prática, perda de direitos e precarização velada.
Transversalidade de carreiras: entre a cooperação e o risco do “faz-tudo”
O relatório final do GT dá destaque à transversalidade como diretriz de reorganização do serviço público, propondo a redução do número de carreiras e concursos mais abrangentes, que permitam mobilidade e deslocamentos de servidores conforme a demanda institucional. Em determinadas áreas muito especializadas, essa diretriz pode de fato ter sentido, na medida em que promove interação entre campos técnicos próximos e estimula soluções integradas para problemas complexos. A crítica dos servidores, contudo, é que, quando aplicada de modo indiscriminado às carreiras de suporte, a transversalidade se converte em polivalência forçada, fragilizando a especialização, diluindo identidades funcionais e aproximando o servidor da condição de “faz-tudo” sem trajetória profissional clara.
Na prática, o risco está em confundir cooperação técnica com desestruturação de percursos profissionais. Ao invés de valorizar a experiência acumulada e a formação específica, a proposta pode resultar em deslocamentos sucessivos que comprometem tanto a qualidade das políticas públicas quanto a motivação dos servidores. Assim, se a transversalidade pode ser legítima como política de integração em setores estratégicos, sua aplicação genérica às carreiras de base reforça a crítica de precarização: carreiras sem identidade, servidores sem horizonte e serviços públicos prestados por quadros versáteis, porém desprovidos da profundidade necessária.
Conclusão
A análise das críticas e preocupações levantadas pelos servidores, cotejada com o conteúdo do relatório final do GT da Reforma Administrativa, revela um quadro consistente: os receios não se baseiam em conjecturas ou exageros retóricos, mas encontram respaldo direto em propostas e diagnósticos que o próprio documento oficial consagra. Da “modernização” descrita como racionalização, mas que se traduz em vínculos temporários e carreiras transversais, até a centralidade do PGD e do teletrabalho sem contrapartidas, o que se observa é a institucionalização de práticas já denunciadas no cotidiano dos órgãos públicos. A retórica da eficiência encobre um movimento de flexibilização estrutural que, longe de fortalecer o Estado, tende a reduzir sua capacidade de garantir políticas universais.
Esse cotejo reforça a importância de compreender as reformas administrativas não apenas pela ótica normativa, mas também em sua dimensão política e institucional. Dirigentes sindicais apontam com insistência a lógica fiscalista que subordina o orçamento social à dívida, a mercantilização de serviços essenciais e a estigmatização dos servidores como “privilegiados” — narrativas que se difundem no debate público e encontram eco, ainda que suavizado, no texto do relatório. Mais do que ruído discursivo, tais críticas revelam uma leitura política atenta da direção em que a reforma pretende avançar: uma reconfiguração do vínculo público capaz de fragilizar a impessoalidade, a continuidade e a autonomia técnica da administração.
Por isso, a interpretação técnico-jurídica que se fará em momento subsequente somente terá utilidade se estiver ancorada na compreensão das críticas políticas e dos riscos institucionais confirmados pelo relatório. Essa etapa preliminar é decisiva: reconhecer que as preocupações dos servidores não apenas têm fundamento, mas estão refletidas no próprio desenho da reforma, permite orientar uma atuação jurídica mais lúcida e eficaz, apta a se articular não apenas nos tribunais, mas também no debate público sobre o modelo de Estado que se pretende preservar.
Foto/Crédito: Escritório Cassel Ruzzarin Advogados Associados
Fonte: https://servidor.adv.br/atuacoes/os-servidores-tem-razao-em-se-preocupar-com-a-reforma-administrativa/764?_gl=1*eysnck*_gcl_au*NjUwODYxNTc1LjE3NTk1MDI0MjE.